"Quando o medo chega, deixamos de dominar o cérebro e as emoções. A angústia torna-se um rio a encher-nos o corpo até à boca.
Apertou os lábios para se suster à tona de si mesmo. Tinha de controlar-se, de crer que a morte é a libertação, de lhe dirigir palavras serenas, de desejá-la, entregar-se-lhe como quando se deitava exausto, a face na frescura da almofada, a tepidez dos cobertores, o afago das mãos imaginadas.
Fecha os olhos na espera do definitivo. Afunda-se. Desce devagar por entre as vísceras, os desejos, derrama-se na saliva, no universo do corpo cada vez mais distante, flutuando por poalhas suavíssimas. Acorda com a casa escura, gelada como nunca. Apenas o ruído dos carros ao longe, o apitar do comboio, o vento, o uivo da natureza e dos bichos, as vozes dentro de si, os pensamentos em catadupa lhe trazem a invenção da vida.
Parecia que forças desconhecidas o empurravam para outras dimensões, sonhadas, escondidas, um homem é feito de segredos profundos, de incontáveis horrores e deslumbramentos.
Só a sabedoria da disponibilidade nos protege."
in "O Viúvo", Fernando Dacosta