"«Não penses muito», diziam os amigos, «pensa em nada».
Mas ela não conseguia impedir-se de pensar em nada.
E seguia como se fosse guiada. Para onde os outros não têm direcção.
Para esperar por quem fosse ter com ela.
Dá-me. Dá-me a mão pequena para segurar. Põe nas minhas mãos as mãos que morreram, que Deus me mandou, que me vinham salvar. Preciso que me prendam à vida, à vida que entretanto me partiu e me deixou assim, sem passado e sem morada, à procura do coração que o teu amor e o teu corpo mataram.
Só resta chorar. Mas chorar demora muito tempo.
Eu preferia arrepender-me.
Leio demais. Oiço demais. Vejo demais. Estou parado demais, recebendo mais do que consigo receber.
O céu parece-me demasiado azul. A música é mais triste do que mesmo, os mais tristes, precisaríamos.
Deixem-me sair daqui. A única coisa que sei fazer é sentir. Preciso que me ensinem a enganar-me. Preciso que me ensinem a interromper.
Vivo demais. Penso de menos. Acordo para acordar os outros. É como se a luz me acompanhasse. É como se o sol, quando nascesse, viesse propositadamente acordar-me.
Estou sozinho demais. Nas minhas estrelas não há noite nem amor. Tenho as mãos vazias, viradas para o céu, como se tivessem recebido a lua, como se tivessem encharcadas da tinta da escuridão.
Esta música afastou-me da tua respiração. Vem depressa, antes que seja tarde, o meu coração tem a lembrança curta e as minhas mãos só servem para te tocar. Abriga-te, guarda-te, justifica-te, no meu peito grande.
O tempo vai mal para quem foge só por fugir - ajuda quem desistiu dalguém por quem procurar.
Descansa os teus braços. Fecha os teus olhos. O Outono é como um sono - finalmente se vê; finalmente vem.
(...)
Deixa o teu tempo de lado. Põe o teu amor de parte. Escreve-me aquele postal outra vez. E por aí."
Miguel Esteves Cardoso
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